quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Pierre Lévy: a revolução digital só está no começo

"É absurdo imaginar que um instrumento que aumenta os poderes da linguagem em geral pudesse favorecer somente a verdade, o bem e o belo. É preciso sempre perguntar: verdadeiro para quem? Belo para quem? Bem para quem? O verdadeiro vem do diálogo aberto aos diversos pontos de vista. Direi até mais do que isso: se tentássemos transformar a internet numa máquina de produzir somente a verdade, o belo e o bem, só chegaríamos a um projeto totalitário, de resto, sempre fadado ao fracasso."
Em entrevista, o filósofo da informação Pierre Lévy faz um balanço de pouco mais de três décadas de web, a teia global, o hipertexto, a navegação na rede ao alcance de todos.

O desenvolvimento da internet levou mais tempo do que normalmente se imagina. Com o surgimento da web, há aproximadamente 30 anos, porém, aconteceu uma explosão. Pode-se dizer que o mundo, de fato, entrou numa nova era? Há muito ainda para surgir ou esse ciclo, com tudo o que ele comporta, já bateu no teto?
Pierre Lévy: 
De qualquer maneira, a internet se expandiu mais rapidamente do que qualquer outro sistema de comunicação na história. No começo dos anos 1990, havia 1% da população mundial conectada. Uma geração depois, já eram 40%. Avançamos rapidamente para 50% e mais… Estamos apenas no começo da revolução do meio do algoritmo. Nas próximas décadas, acompanharemos várias mutações. A computação ubíqua, que já faz parte da nossa paisagem, vai se generalizar fazendo com que a maioria esteja permanentemente conectada. O acesso à análise de grandes quantidades de dados, hoje nas mãos de governos e de grandes empresas, vai se democratizar. Teremos cada vez mais imagens de nosso funcionamento coletivo em tempo real. A educação vai se focar na formação crítica e no tratamento coletivo de dados. A esfera pública será internacional e se organizará por nuvens semânticas nas redes sociais. Os países passarão da forma “Estado-nação" para constelações de Estado, com um território soberano e uma zona desterritorializada na infosfera de conexão total. As criptomoedas, moedas digitais criptografadas, vão se disseminar.

Fala-se muito em internet dos objetos e em internet total. São verdadeiras mutações ou apenas acelerações?
Pierre Lévy:
 A internet pode ser analisada em dois aspectos conceitualmente distintos, mas praticamente interdependentes e inseparáveis. Por um lado, a infosfera, os dados, os algoritmos, imateriais e ubíquos. São as nuvens. Por outro lado, os receptores, os gadgets, os smartphones, os dispositivos móveis de todos os tipos, os computadores, os data-centers, os robôs, tudo aquilo que é inevitavelmente físico e localizado: os objetos. As nuvens não podem funcionar sem os objetos. Os objetos não podem funcionar sem as nuvens. A internet é a interação constante do localizado e do desterritorializado, a interação dos objetos e das nuvens. Tudo isso pode logicamente ser deduzido da automatização da manipulação do simbólico por meio de sistemas eletrônicos. Sentiremos cada vez mais, de agora em diante, as consequência disso tudo em nossas vidas cotidianas.

Depois de 30 anos de grandes novidades – da web, o famoso www ou a teia – até as redes sociais com seus milhões de adeptos, qual pode ser a grande mutação dos próximos tempos?
Pierre Lévy: 
Depois do surgimento da web, na metade dos anos 1990, não houve grande mutação técnica, somente uma profusão de pequenas evoluções e progressos. No plano sociopolítico, o grande salto me parece ser a passagem de uma esfera pública dominada pelos jornais, pelo rádio e pela televisão para uma esfera pública centrada nas “wikis", nos blogs, nas redes sociais e nos sistemas de moderação de conteúdos onde todo mundo pode se exprimir. Isso significa o começo do fim do monopólio intelectual dos jornalistas, dos editores, dos políticos e dos professores. Um novo equilíbrio ainda não foi alcançado, mas o velho sistema dominante está em franca erosão.

O senhor fala faz muito tempo em inteligência coletiva e em coletivos inteligentes. Vê-se, entretanto, que as redes sociais podem ser utilizadas para o bem e para o mal, por exemplo, para disseminar ideias radicais e extremistas. Pode-se falar de uma inteligência coletiva do mal e da internet como um instrumento também a serviço da estupidez e da barbárie universais?
Pierre Lévy: 
Falo em inteligência coletiva para enfatizar e estimular o aumento das capacidades cognitivas em geral, sem fazer juízo de valor. Refiro-me ao aumento da memória coletiva, ao crescimento das possibilidades de gestão e de criação de redes e das oportunidades de aprendizagem em sistemas de cooperação, com acesso universal a informações e dados. Acredito que esse aspecto é inegável e que todos os atores intelectuais e sociais responsáveis deveriam utilizar essas novas possibilidades na educação, na gestão do conhecimento, nas empresas e nas deliberações políticas democráticas. É preciso inserir a internet na longa série que passa pela invenção da escrita e do impresso. Trata-se de um considerável ganho na capacidade humana de tratamento das operações simbólicas. O núcleo dessa capacidade, contudo, é a linguagem, que existe desde sempre e não depende de qualquer tecnologia em particular.
Graças à linguagem existem a arte, a cultura, a religião, os valores e a complexidade das instituições econômicas, sociais e políticas. Mas falar de linguagem significa também falar em mentira e manipulação. Falar em valores significa falar em bem e mal, belo e feio. É absurdo imaginar que um instrumento que aumenta os poderes da linguagem em geral pudesse favorecer somente a verdade, o bem e o belo. É preciso sempre perguntar: verdadeiro para quem? Belo para quem? Bem para quem? O verdadeiro vem do diálogo aberto aos diversos pontos de vista. Direi até mais do que isso: se tentássemos transformar a internet numa máquina de produzir somente a verdade, o belo e o bem, só chegaríamos a um projeto totalitário, de resto, sempre fadado ao fracasso.

Nas redes sociais, a violência verbal é enorme. As pessoas insultam-se, ofendem-se e dividem-se, cada vez mais, em direita e esquerda, bons e maus, os meus e os teus. Há jornalistas que fecham os seus blogs aos comentários de leitores saturados de posts racistas e de ameaças de todos os tipos. Essa é ainda uma etapa de aprendizagem dos recursos de interação disponíveis?
Pierre Lévy: 
Se alguém me insulta ou me envia coisas chocantes no twitter ou num blog, eu bloqueio e ponto final. Certo é que nunca teremos uma humanidade perfeita. Em contrapartida, o usuário da internet não é um intelectual menor de idade. Ele tem em mãos um grande poder, mas tem também grandes responsabilidades a cumprir. O problema, sobretudo para os professores, consiste em educar esses utilizadores da internet. É preciso ensinar a estabelecer prioridades, a atrair a atenção, a fazer uma escolha justa e uma análise crítica das fontes às quais nos conectamos. Temos de prestar atenção na cultura daqueles com quem nos conectamos e precisamos aprender a identificar as narrativas feitas e as suas contradições. Essa é a nova “digital literacy" (alfabetização digital): tornar-se responsável.

Uma das questões mais discutidas da internet diz respeito aos direitos de autor e a gratuidade dos conteúdos na rede. Os internautas tendem a exigir que tudo seja gratuito. Mas a informação tem um custo. Que vai pagar? Os jornais, cada vez mais, fecham os seus sites deixando apenas uma parte do que produzem disponível a todos. O tempo de pegar para consumir conteúdos chegou?
Pierre Lévy: 
Não é impossível fazer com que os usuários da internet paguem por bons serviços. Além disso, a publicidade e a venda de conteúdos produzidos por utilizadores a empresas de marketing constituem hoje as principais maneiras de “monetizar" os serviços na rede. O direito autoral está claramente em crise no que diz respeito à música e, cada vez mais, para os filmes. Faço questão de destacar os campos da pesquisa e do ensino nos quais os editores aparecem como os principais freios ao compartilhamento de conhecimentos. A remuneração da criação na era dos meios algorítmicos é um problema complexo para o qual eu não tenho resposta simples e válidas em todos os casos.

O senhor tem falado também em democracia virtual. Já é possível falar em avanço rumo a uma nova era democrática?
Pierre Lévy:
 Sim, na medida em que é possível ter acesso a fontes de informação muito mais diversificadas que no passado e na medida também em que todos podem se exprimir para um vasto público. Enfim, porque é muito mais fácil para os cidadãos colocarem-se em contato com vistas à organização, à deliberação, à discussão e à ação. Essa “democracia virtual" pode ter uma base local, como em certos projetos de “cidades inteligentes", mas há também uma desterritorialização ou uma internacionalização da esfera pública. É possível, por exemplo, acompanhar, em tempo real, a vida política de inúmeros países e de seguir pontos de vista de pessoas, sobre assuntos que nos interessem, no planeta inteiro. Não podemos esquecer as campanhas políticas que utilizam as tecnologias de análise de dados e dos perfis de marketing, assim como o monitoramento, ou até a manipulação, da opinião pública mundial nas redes sociais pelas agências de inteligência e de informação (de todos os países).

A internet já mudou a nossa maneira de pensar, de ler e de organizar a nossa construção mental do saber?
Pierre Lévy:
 Isso é inegável. O acesso imediato a dicionários, enciclopédias, entre as quais a Wikipédia, livros (gratuitos ou pagos), vídeos educativos e outros dispositivos colocou à disposição de todos o equivalente a imensas bibliotecas. Além disso, podemos ser assinantes de incontáveis sites especializados e contatar redes de pessoas interessadas nos mesmos assuntos para construir saberes de modo colaborativo. O desenvolvimento de novos tipos de rede de colaboração na pesquisa ou na educação (os famosos MOOC – Curso Online Aberto e Massivo, “Massive Open Online Course") são a prova clara e definitiva disso que estou sustentando nesta resposta.

Tem uma canção brasileira famosa que diz, “ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais". Depois da internet, somos os mesmos e vivemos como nossos pais ou nos separamos deles?
Pierre Lévy: 
Continuamos seres humanos encarnados e mortais, felizes e infelizes. A condição humana fundamental não muda. O que muda é a nossa cultura material e intelectual. O nosso potencial de comunicação multiplicou-se e distribuiu-se no conjunto da sociedade. A percepção do mundo que nos cerca aumentou e tornou-se mais precisa. A nossa memória cresceu. A nossa capacidade de análise de situações complexas a partir de massas de dados vão, em breve, transformar a nossa relação com o meio ambiente biológico e social. Graças à quantidade de dados disponíveis e ao crescimento de nosso poder de cálculo, vamos provavelmente experimentar no século XXI uma revolução das ciências humanas comparável à revolução da ciências naturais no século XVII. Nós somos sempre os mesmos, mas mudamos.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Sociólogo diz que sociedade está ‘enfeitiçada’ pela mídia: ‘Só as versões são realidade’

Laymert: “Edward Snowden e Julian Assange
entenderam que o poder está na informação
que está oculta” | Foto:

(Wilson Dias/Agência Brasil)
Eduardo Maretti
Da RBA
Em debate realizado pelo Fórum 21 nesta quinta-feira (12), na série “Seminários para o Avanço Social”, o sociólogo Laymert Garcia dos Santos, da Unicamp, e doutor em Ciências da Informação pela Universidade de Paris VII, afirmou que a realidade atual, com o monopólio da informação pela mídia tradicional, é “desesperadora”. Para ele, a sociedade está “enfeitiçada” pela manipulação. “Só as versões se tornam realidade, ao ponto de as pessoas não saberem mais o que é real e o que não é.”
Segundo Laymert, exemplo esclarecedor a respeito é a operação midiática de transformar a presidenta Dilma Rousseff no objeto de ataques sistemáticos e culpada de tudo o que de ruim acontece ou pode acontecer no país. A operação, lembra, começou na Copa do Mundo de 2014. “Trinta ou quarenta mil pessoas na Avenida Paulista (manifestação da esquerda em 13 de março de 2015) debaixo de chuva não é notícia. Porque para os meios de comunicação é preciso manter no ar a ideia do golpe. É preciso manter no ar permanentemente alguma coisa.”
O sociólogo lembra que o início da deslegitimação de Dilma, na Copa, partiu do camarote do Banco Itaú no estádio, onde estava a colunista Sonia Racy. “Não foi à toa que foi escolhido esse local.” Na ocasião da abertura da Copa, no Itaquerão, em São Paulo, o blogueiro Luiz Carlos Azenha registrou em seu blog: “Uma importante colunista social do Estadão, sentada no camarote do Banco Itaú, gritou a plenos pulmões – aparentemente entusiasmada – ‘Ei, Dilma, VTNC’”.
Diante da sistemática ofensiva do oligopólio de comunicação, “não existe mais” cobertura (jornalística), no sentido de processar informações reais. “A mídia é parte ativa na criação de versões e ficções sobre o que acontece. O que é de fato real soçobra.”
Entre os veículos de comunicação que fazem parte da campanha contra o governo petista de Dilma Rousseff, Laymert considera a Folha de S. Paulo o mais sofisticado e eficiente na construção do discurso da negatividade. “A Folha é a mais elaborada, porque eles estão há mais de 30 anos elaborando o discurso do ressentimento. Sempre, em qualquer momento em que há uma positividade, o discurso é negativo. Se a notícia é boa, existe o recurso: ‘mas…’”
A operação que se desenvolveu nos últimos meses para proteger o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que poderia ser o condutor do impeachment desejado pela direita do país, para o sociólogo, é absurda. “Ele (Cunha) está apodrecendo todos os dias e não cai. Como é possível construir essas redes de proteção? Os ladrões estão gritando ‘pega ladrão’ para quem não é ladrão.”
O grande problema, para Laymert, é que “o outro lado não consiga responder”. Segundo a análise, “estamos vivendo um fenômeno complicado para o qual a esquerda não tem respostas”. Ele diz que desde os anos 1980 observa a dificuldade da esquerda em compreender a questão midiática. Um dos principais erros de líderes petistas foi acreditar que, quando o PT chegasse ao poder, haveria uma “troca de sinal” e os meios de comunicação passariam a ser mais benevolentes com os esquerdistas. Mas o que se viu foi o contrário. “Uma vez no poder, a esquerda tem uma atitude ao mesmo tempo de submissão e fascínio pelos meios de comunicação.”
Snowden e Assange
Laymert acredita que nem mesmo setores da mídia de esquerda, como os chamados “blogueiros sujos”, entendem o processo midiático atual. “Os ‘blogueiros sujos’ não entendem, embora estejam mais perto de entender, que a política hoje não é mais a política, mas a tecnopolítica. Quem entendeu isso foram homens como Julian Assange (do Wikileaks) e Edward Snowden”, disse o professor da Unicamp. Ex-funcionário da agência de inteligência americana, a NSA, Snowden tornou público que o governo dos Estados Unidos opera um sistema de vigilância que abrange cidadãos e governos em todos os lugares do mundo que lhe interessem.
“Há uma dimensão totalitária quanto à linguagem e a instrumentalização da linguagem política. Não vejo como a esquerda possa reagir diante dessa ofensiva totalitária da mídia”, diz Laymert. “Snowden e Assange entenderam que o poder está na informação. Mais do que isso, entenderam que, ao contrário do Facebook, que fornece mais do mesmo e satisfaz o narcisismo das pessoas, o que importa é a informação que não se vê, que está oculta. No mundo atual, a informação real é a que não é exposta.”
O último debate da série promovida pelo Fórum 21 será realizado nesta sexta-feira (13), às 9h, na Assembleia Legislativa, com o tema “Impeachment e golpe”, com a participação do ex-candidato ao governo de São Paulo pelo Psol, em 2014, Gilberto Maringoni.
Fonte: Sul21