"É
absurdo imaginar que um instrumento que aumenta os poderes da linguagem em
geral pudesse favorecer somente a verdade, o bem e o belo. É preciso sempre
perguntar: verdadeiro para quem? Belo para quem? Bem para quem? O verdadeiro
vem do diálogo aberto aos diversos pontos de vista. Direi até mais do que isso:
se tentássemos transformar a internet numa máquina de produzir somente a
verdade, o belo e o bem, só chegaríamos a um projeto totalitário, de resto,
sempre fadado ao fracasso."
Em
entrevista, o filósofo da informação Pierre Lévy faz um balanço de pouco mais de três
décadas de web, a teia global, o hipertexto, a navegação na rede ao alcance de
todos.
O desenvolvimento da internet levou mais tempo do que normalmente
se imagina. Com o surgimento da web, há aproximadamente 30 anos, porém,
aconteceu uma explosão. Pode-se dizer que o mundo, de fato, entrou numa nova
era? Há muito ainda para surgir ou esse ciclo, com tudo o que ele comporta, já
bateu no teto?
Pierre Lévy: De qualquer maneira, a internet se expandiu
mais rapidamente do que qualquer outro sistema de comunicação na história. No
começo dos anos 1990, havia 1% da população mundial conectada. Uma geração
depois, já eram 40%. Avançamos rapidamente para 50% e mais… Estamos apenas no
começo da revolução do meio do algoritmo. Nas próximas décadas, acompanharemos
várias mutações. A computação ubíqua, que já faz parte da nossa paisagem, vai
se generalizar fazendo com que a maioria esteja permanentemente conectada. O
acesso à análise de grandes quantidades de dados, hoje nas mãos de governos e
de grandes empresas, vai se democratizar. Teremos cada vez mais imagens de
nosso funcionamento coletivo em tempo real. A educação vai se focar na formação
crítica e no tratamento coletivo de dados. A esfera pública será internacional
e se organizará por nuvens semânticas nas redes sociais. Os países passarão da
forma “Estado-nação" para constelações de Estado, com um território
soberano e uma zona desterritorializada na infosfera de conexão total. As
criptomoedas, moedas digitais criptografadas, vão se disseminar.
Fala-se muito em internet dos
objetos e em internet total. São verdadeiras mutações ou apenas acelerações?
Pierre Lévy: A internet pode ser analisada em dois aspectos conceitualmente
distintos, mas praticamente interdependentes e inseparáveis. Por um lado, a
infosfera, os dados, os algoritmos, imateriais e ubíquos. São as nuvens. Por
outro lado, os receptores, os gadgets, os smartphones, os dispositivos móveis
de todos os tipos, os computadores, os data-centers, os robôs, tudo aquilo que
é inevitavelmente físico e localizado: os objetos. As nuvens não podem
funcionar sem os objetos. Os objetos não podem funcionar sem as nuvens. A
internet é a interação constante do localizado e do desterritorializado, a
interação dos objetos e das nuvens. Tudo isso pode logicamente ser deduzido da
automatização da manipulação do simbólico por meio de sistemas eletrônicos.
Sentiremos cada vez mais, de agora em diante, as consequência disso tudo em
nossas vidas cotidianas.
Depois de 30 anos de grandes
novidades – da web, o famoso www ou a teia – até as redes sociais com seus
milhões de adeptos, qual pode ser a grande mutação dos próximos tempos?
Pierre Lévy: Depois do surgimento da web, na metade dos
anos 1990, não houve grande mutação técnica, somente uma profusão de pequenas
evoluções e progressos. No plano sociopolítico, o grande salto me parece ser a
passagem de uma esfera pública dominada pelos jornais, pelo rádio e pela
televisão para uma esfera pública centrada nas “wikis", nos blogs, nas
redes sociais e nos sistemas de moderação de conteúdos onde todo mundo pode se
exprimir. Isso significa o começo do fim do monopólio intelectual dos
jornalistas, dos editores, dos políticos e dos professores. Um novo equilíbrio
ainda não foi alcançado, mas o velho sistema dominante está em franca erosão.
O senhor fala faz muito tempo
em inteligência coletiva e em coletivos inteligentes. Vê-se, entretanto, que as
redes sociais podem ser utilizadas para o bem e para o mal, por exemplo, para
disseminar ideias radicais e extremistas. Pode-se falar de uma inteligência
coletiva do mal e da internet como um instrumento também a serviço da estupidez
e da barbárie universais?
Pierre Lévy: Falo em inteligência coletiva para
enfatizar e estimular o aumento das capacidades cognitivas em geral, sem fazer
juízo de valor. Refiro-me ao aumento da memória coletiva, ao crescimento das
possibilidades de gestão e de criação de redes e das oportunidades de
aprendizagem em sistemas de cooperação, com acesso universal a informações e
dados. Acredito que esse aspecto é inegável e que todos os atores intelectuais
e sociais responsáveis deveriam utilizar essas novas possibilidades na
educação, na gestão do conhecimento, nas empresas e nas deliberações políticas
democráticas. É preciso inserir a internet na longa série que passa pela
invenção da escrita e do impresso. Trata-se de um considerável ganho na
capacidade humana de tratamento das operações simbólicas. O núcleo dessa
capacidade, contudo, é a linguagem, que existe desde sempre e não depende de
qualquer tecnologia em particular.
Graças à linguagem
existem a arte, a cultura, a religião, os valores e a complexidade das instituições
econômicas, sociais e políticas. Mas falar de linguagem significa também falar
em mentira e manipulação. Falar em valores significa falar em bem e mal, belo e
feio. É absurdo imaginar que um instrumento que aumenta os poderes da linguagem
em geral pudesse favorecer somente a verdade, o bem e o belo. É preciso sempre
perguntar: verdadeiro para quem? Belo para quem? Bem para quem? O verdadeiro
vem do diálogo aberto aos diversos pontos de vista. Direi até mais do que isso:
se tentássemos transformar a internet numa máquina de produzir somente a
verdade, o belo e o bem, só chegaríamos a um projeto totalitário, de resto,
sempre fadado ao fracasso.
Nas redes sociais, a violência
verbal é enorme. As pessoas insultam-se, ofendem-se e dividem-se, cada vez
mais, em direita e esquerda, bons e maus, os meus e os teus. Há jornalistas que
fecham os seus blogs aos comentários de leitores saturados de posts racistas e
de ameaças de todos os tipos. Essa é ainda uma etapa de aprendizagem dos
recursos de interação disponíveis?
Pierre Lévy: Se alguém me insulta ou me envia coisas
chocantes no twitter ou num blog, eu bloqueio e ponto final. Certo é que nunca
teremos uma humanidade perfeita. Em contrapartida, o usuário da internet não é
um intelectual menor de idade. Ele tem em mãos um grande poder, mas tem também
grandes responsabilidades a cumprir. O problema, sobretudo para os professores,
consiste em educar esses utilizadores da internet. É preciso ensinar a
estabelecer prioridades, a atrair a atenção, a fazer uma escolha justa e uma
análise crítica das fontes às quais nos conectamos. Temos de prestar atenção na
cultura daqueles com quem nos conectamos e precisamos aprender a identificar as
narrativas feitas e as suas contradições. Essa é a nova “digital literacy"
(alfabetização digital): tornar-se responsável.
Uma das questões mais
discutidas da internet diz respeito aos direitos de autor e a gratuidade dos
conteúdos na rede. Os internautas tendem a exigir que tudo seja gratuito. Mas a
informação tem um custo. Que vai pagar? Os jornais, cada vez mais, fecham os
seus sites deixando apenas uma parte do que produzem disponível a todos. O
tempo de pegar para consumir conteúdos chegou?
Pierre Lévy: Não é impossível fazer com que os usuários
da internet paguem por bons serviços. Além disso, a publicidade e a venda de
conteúdos produzidos por utilizadores a empresas de marketing constituem hoje
as principais maneiras de “monetizar" os serviços na rede. O direito
autoral está claramente em crise no que diz respeito à música e, cada vez mais,
para os filmes. Faço questão de destacar os campos da pesquisa e do ensino nos
quais os editores aparecem como os principais freios ao compartilhamento de
conhecimentos. A remuneração da criação na era dos meios algorítmicos é um
problema complexo para o qual eu não tenho resposta simples e válidas em todos
os casos.
O senhor tem falado também em
democracia virtual. Já é possível falar em avanço rumo a uma nova era
democrática?
Pierre Lévy: Sim, na medida em que é possível ter acesso a fontes de
informação muito mais diversificadas que no passado e na medida também em que
todos podem se exprimir para um vasto público. Enfim, porque é muito mais fácil
para os cidadãos colocarem-se em contato com vistas à organização, à
deliberação, à discussão e à ação. Essa “democracia virtual" pode ter uma
base local, como em certos projetos de “cidades inteligentes", mas há
também uma desterritorialização ou uma internacionalização da esfera pública. É
possível, por exemplo, acompanhar, em tempo real, a vida política de inúmeros
países e de seguir pontos de vista de pessoas, sobre assuntos que nos
interessem, no planeta inteiro. Não podemos esquecer as campanhas políticas que
utilizam as tecnologias de análise de dados e dos perfis de marketing, assim
como o monitoramento, ou até a manipulação, da opinião pública mundial nas
redes sociais pelas agências de inteligência e de informação (de todos os
países).
A internet já mudou a nossa
maneira de pensar, de ler e de organizar a nossa construção mental do saber?
Pierre Lévy: Isso é inegável. O acesso imediato a dicionários, enciclopédias,
entre as quais a Wikipédia, livros (gratuitos ou pagos), vídeos educativos e
outros dispositivos colocou à disposição de todos o equivalente a imensas
bibliotecas. Além disso, podemos ser assinantes de incontáveis sites
especializados e contatar redes de pessoas interessadas nos mesmos assuntos
para construir saberes de modo colaborativo. O desenvolvimento de novos tipos
de rede de colaboração na pesquisa ou na educação (os famosos MOOC – Curso
Online Aberto e Massivo, “Massive Open Online Course") são a prova clara e
definitiva disso que estou sustentando nesta resposta.
Tem uma canção brasileira
famosa que diz, “ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais". Depois
da internet, somos os mesmos e vivemos como nossos pais ou nos separamos deles?
Pierre Lévy: Continuamos seres humanos encarnados e
mortais, felizes e infelizes. A condição humana fundamental não muda. O que
muda é a nossa cultura material e intelectual. O nosso potencial de comunicação
multiplicou-se e distribuiu-se no conjunto da sociedade. A percepção do mundo
que nos cerca aumentou e tornou-se mais precisa. A nossa memória cresceu. A
nossa capacidade de análise de situações complexas a partir de massas de dados vão,
em breve, transformar a nossa relação com o meio ambiente biológico e social.
Graças à quantidade de dados disponíveis e ao crescimento de nosso poder de
cálculo, vamos provavelmente experimentar no século XXI uma revolução das
ciências humanas comparável à revolução da ciências naturais no século XVII.
Nós somos sempre os mesmos, mas mudamos.